Desde a última semana, minhas idas ao trabalho têm sido tensas e reflexivas. Isso porque por alguns dias, cumpri meu itinerário matutino diário na companhia de personagens já clássicos da literatura inglesa: Sansão, Quitéria, Garganta, Bola de Neve... e Napoleão. São esses os principais nomes que protagonizam A Revolução dos Bichos, de George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair).
O livro narra primeiramente a luta dos animais de uma fazenda chamada Granja do Solar contra seu dono, o fazendeiro opressor Mr. Jones. Cansados de tanta exploração, os animais, encorajados com ideias de igualdade e liberdade, expulsam o fazendeiro da fazenda e passam a administrar as terras sozinhos, sob o controle dos porcos Bola de Neve e Napoleão e obedecendo a um conjunto de conceitos sociais, como "todos os animais são iguais" e "quatro patas bom, duas patas ruim". Mas com o tempo, a situação começa a se complicar na Granja dos Bichos quando Napoleão dá um "golpe de estado" e expulsa seu companheiro de liderança da fazenda. Começa-se a desvirtuar e manipular cada um dos conceitos que incitaram a revolução, e o novo único líder instaura gradativamente um sistema autoritário e sanguinário, visando apenas seus próprios interesses e submetendo os animais a uma gestão tão cruel ou pior à que viviam antes da revolução.
Primordialmente, é necessário lembrar que o livro é uma crítica clara e de fácil compreensão aos absurdos que ocorriam na URSS (antiga União Soviética) no governo comunista de Josef Stalin, visto hoje como um dos mais malignos ditadores da história. Por causa disso, a obra é constantemente usada como propaganda contra o comunismo em geral, mas há controvérsias. Até porque Stalin maquiou usou sim os ideais comunistas para chegar ao poder e maquiou-os a seu gosto para impor seu governo truculento. Socialismo e comunismo não implicam em ter um governo autoritário. Isso foi uma peculiaridade - horrorosa, obviamente - do governo de Stalin. E além disso, o próprio Orwell se considerava pró-socialismo, simpatizava com o trotskismo e via no governo stalinista, especificamente, "poucos indícios de que a URSS estivesse avançando na direção de algo que pudesse chamar de socialismo". Isso fica claro no livro, já que a Napoleão (Stalin), o verdadeiro antagonista da história, trai seu camarada Bola de Neve (Trotsky), expulsando-o da fazenda, espalhando mentiras a seu respeito e demonizando-o, mas em nenhum momento Orwell revela quais eram as reais intenções de Bola de Neve na história: se suas convicções de igualdade e justiça eram legítimas e sinceras ou se o mesmo era uma farsante obcecado pelo poder como Napoleão. Logo, generalizar a crítica do livro e direcioná-la às ideias socialistas como um todo é extremamente equivocado.
Mas independente de comunismo e socialismo, o livro até hoje serve como uma bela crítica a todo e qualquer sistema sustentados por manipulação política e alienação, seja ele de esquerda ou de direita. Os mesmos elementos presentes em uma sociedade capitalista também estão aqui: há o líder explorador; os proletários que exercem os trabalhos braçais; há a figura religiosa (o corvo) que chega com o objetivo de pacificar o proletariado e fazê-los acreditar em um cenário paradisíaco que habitarão no futuro; o porta-voz persuasivo 'contratado' pelo governo para influenciar a comunidade; e tem a classe que não pensa por si mesma (as ovelhas, que alguns dizem ousadamente estarem representando a classe média despolitizada - e eu reforço esse pensamento) e só repete, descerebradamente, tudo que a classe dominante lhe impõe, influenciando a classe proletária a também aceitarem a tudo.
O que se vê durante todo o livro é uma humanização do vilão. Vê-se um porco deixando de lado sua natureza animalesca e incorporando hábitos próprios dos seres humanos. No final do livro, essa humanização atinge seu ápice, em uma das cenas mais horripilantes que já li (pesada, por todo o seu significado), culminando em um desfecho aterrador. A escrita de George Orwell deixa tudo ainda mais tenso. O autor escrever de forma completamente ausente, externa, contendo-se apenas em narrar os fatos. Não há qualquer tipo de profundidade no sentimento dos personagens. A escrita é propositalmente superficial, e a ausência do narrador nesse ponto deixa o leitor ainda mais desolado, já que tudo o que pode ser feito diante dos absurdos cometidos por Napoleão é só e somente assistir (no caso, ler).
Depois de ler o livro, decidi assistir ao filme - sim, já foi adaptado para o cinema. A versão cinematográfica que assisti foi uma animação (a primeira animação britânica do cinema) de 1954, adaptada, dirigida e produzida por John Halas e Joy Batchelor. Essa versão, a nível de curiosidade, foi um dos filmes escolhidos para figurar aquele famoso livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Foi através desse livro que tomei conhecimento dessa adaptação e por isso a escolhi para assistir. A animação é sombria e os personagens possuem traços assustadores. É válido lembrar que nessa época, a hegemonia no "reino das animações" era toda de Walt Disney, com seus personagens bonitinhos, seu sentimentalismo e sua magia. Esse filme, voltado para os adultos, destoou bastante das animações americanas da época, e creio ser esse o maior motivo para ser tão reconhecido. No mais, a animação é um fiel, porém breve resumo de tudo que é apresentado no livro (com uma exceção de seu desfecho, levemente alterado para uma direção mais otimista).
A Revolução dos Bichos é sim uma obra que devia ser lida por todo mundo. Mas algo importante: é uma obra que devia ser lida por todo mundo com consciência. É completamente errôneo sair por aí usando certas obras como crítica a alguma coisa quando não se tem certeza do que o autor quis mesmo dizer com cada elemento. É sabido que a obra é uma crítica ao stalinismo... mas e o socialismo de Marx, o socialismo puro e inicial, longe de qualquer intervenção de Stalin ou Trotsky? Não seriam essas as verdadeiras ideias defendidas pelo autor?
Esse post foi escrito ao som de Histoire de Melody Nelson, de Serge Gainsbourg.
Esse post foi escrito ao som de Histoire de Melody Nelson, de Serge Gainsbourg.
Nenhum comentário:
Postar um comentário