sábado, 19 de julho de 2014

Hilda Hilst

Terminei recentemente de ler meu segundo livro da incrível Hilda Hilst (o primeiro foi A Obscena Senhora D, que considero até hoje uma das leituras mais peculiares de toda a vida). Dessa vez, li Baladas, uma publicação da Editora Globo que reúne os três primeiros livros da poetisa: Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada do Festival (1955).

Hilda Hilst é muito conhecida por ter uma poética extremamente livre de pudores, definida muitas vezes como pornográfica e depravada. Mas nesses três primeiros livros, ainda sem as características mais marcantes de toda sua obra, somos apresentados a poemas intimistas, confessionais e extremamente líricos, lidando com assuntos bastante delicados - muitas vezes, a própria morte.

Decidi reunir nesse post os três poemas que mais gostei de cada um dos livros de Baladas.


E aí vão eles:

Presságio (1950)


X

Olhamos eternamente
para as estrelas
como mendigos
que eternamente
olham para as mãos.

E imaginamos
cousas absurdas
de realização.
Cousas que não existem
e cujo valor
é o de consistirem
parte da ilusão.

E olhamos eternamente
para as estrelas
porque parecem diferentes.
E quando agrupadas
eu as revejo individualizadas.
Clóvis Graciano para o poema "III" da "Balada de Alzira"
Estrelas... só.
Quem sabe se naquela imensidão
elas sofrem o mal dissolvente,
passivo
mas dissolve ainda: solidão.

Brilham para o mundo.
No entanto estão sozinhas
na lúgubre fantasia de pontas.

Nunca, meditem,
nunca as encontraremos
pois elas olham
igualmente pra nós
e nos desejam
porque estão sós.


XII

Dia doze... e eu não suportarei
o estado normal das cousas.
O ano que vem, não vou desejar
felicidades a ninguém.

Nem bom natal, nem boas entradas.

Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.
E continuam a viver sem interrupção,
apressadamente como no ato do amor.
São doidos e não percebem que amanhã
Cristina não virá.
Que amanhã Cristina vai morrer
porque ama a vida.

Amanhã serei corajosamente Cristina.
Eu, amando todos os que sofrem.
Eu... essência.

Mas os meus amigos, coitados,
não percebem.
Fazem filhos nascer, fazem tragédia.
Não sabem que o amor não é amor
e a natureza é um mito.

Não sabem de nada os meus amigos.
E não vou explicar
porque podem ficar sentidos.
São puros, vão morrer como anjos.
Vão morrer sem nada saber
daqueles dias perdidos.

Vão morrer sem saber que estão morrendo.


XIV

Fui monja
vestida de negro
em labirinto azul.


Antes do Ser
havia um homem
consciente
destruindo o lirismo
descuidado
das minhas madrugadas.

Estava presente
nas conversas dos bares
- solitárias histórias.
Estava presente
na fusão dos homens medíocres
e dos homens sem cor.

Em azul e negro
eu vi o esboço
de um caso triste,
aquele doido
procurando as mãos.
As mãos que deixara
sobre alguma mesa
de mármore azulado
em algum labirinto azul.

Andei tanto por corredores vagos
que nas minhas chagas
não existem pés.
Inconsciente monja vestida de negro,
teus cabelos eram feitos de conchas,
teu véu de redes do mar.
Entre os dedos tinhas contas coloridas.
Mas, havia um homem
consciente
destruindo o lirismo
das tuas madrugadas.

Morreu o mundo das monjas.
Morreu o mundo das mãos.
Sou doida desfigurada
procurando mãos
mergulhadas em azul.

Sou quase morta
no descanso estéril
da cor negra.


Balada de Alzira (1951)


Hilda Hilst
IX
Poema do Fim

A morte surgiu
intocável e pura.
Depois, teu corpo se alongou
inteiro sobre as águas.
Dos teus dedos compridos
estouraram flores
e ficaram árvores
ao sol.

Escorreguei meus braços
no teu peito sem queixa
e cobri meu corpo
com teu corpo de espuma.
.............................................

Ainda ontem
os homens colheram rosas
que nasceram de nós.


XI

Amado, quando morreres
mil estrelas cor de sangue
virão recobrir-te o peito.
Uma delas ficará
perdida por entre os dedos.
À outra tu contarás
o livro que não fizeste
reza que não aprendeste
e vontade que tiveste
de ver amigos chorando
chorando por causa tua.

E todos hão notar
água claras nos teus olhos
e sombra nos teus cabelos
e pena que vai crescer
no teu coração de luto.

Pena desses que ficaram
consumidos na incerteza
ou pena daquele amante
que nunca soube dizer
o que sonharas ouvir.

Os homens hão de chorar
no teu momento de morte.
Porque dirás às estrelas
todas as coisas caladas
que só a mim revelaste.


XVII
Balada de Alzira

O homem que não foi meu
um dia será de Alzira.
E passará os seus dedos
sobre suas pernas de virgem
e contará o segredo
daquele olhar de menina.
Amado, bem o sabia
que os meus delírios noturnos
nunca te resguardariam
do sabor dos frutos novos.
Os homens querem Alzira
e os escondidos dos mares
e as conchas que não se lançam
às vontades das marés.
Há muito que pressentia
teu gesto de retirada
(como a noite espera o dia
mergulhada no silêncio)
Alzura, menina pura
teu corpo feito de lírios
assustava aquele meu
maduro e já sem vontade
de lutas e de emboscadas.
..................................................

O homem que não foi meu
(porque me deu estertores
que à outra seriam dados)
em tardes de fevereiro
Alzira levou p'ra longe.
.................................................

Aquela menina puta
ficou pétala fendida
flor com mil olhos de água
espantados e noturnos.

Alzira soluço brando
e face tão misteriosa
que pena tenho guardada
por te saber corrompida.


Balada do Festival (1955)


Hilda Hilst
VII

Inadvertida rosa.
Quis avisar-te
do roteiro sem fim
das urzes e da ventania.
(Já era tarde quando
pense em procurar-te.
De nada adiantaria.)

Deixaste a terra
que te alimentava
e o lírio. Te lembras?
Aquele que aos teus pés crescia.
Nada somos sem ti.
No entanto, espera.
Na tua volta
deixarão que eu fale
porque sou poeta.
E te direi...

estrela inédita
na vastíssima escuridão
que me contorna. Surgiste.


XIV
Balada do Festival

Na verdade apareceu
vindo de terras distantes
um homem quase porta
que me amou e que se deu
a mim e a outras também.
E dizia ao telefone
coisas tão ternas, tão tudo,
que só de ouvi-lo e esperá-lo
muita mulher se perdeu.
Muita mulher... também eu.
Amei-o naquela pressa
de horas marcadas e hotéis...
dentro de mim a promessa
de amá-lo ainda que fosse
na velha China, nos mares,
dentro de algum avião.
E quando ele me chamava
eu toda vagotonia
ia e vinha e pressentia
o homem que me fugia
de passaporte na mão.


XVI

Há uma paisagem sem cor dentro de mim.
Vejo-a tão perto e tão esplêndida...
súbita luz, nave dourada, espelho,
e transformando-se em névoa
intacta submerge.

Sem dúvida, meu amigo, a ilha
seria o nosso porto.
E depois dela viria o monólogo
e a certeza das coisas impossíveis.


Esse post foi escrito ao som de Waterloo, de ABBA.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A Revolução dos Bichos

Desde a última semana, minhas idas ao trabalho têm sido tensas e reflexivas. Isso porque por alguns dias, cumpri meu itinerário matutino diário na companhia de personagens já clássicos da literatura inglesa: Sansão, Quitéria, Garganta, Bola de Neve... e Napoleão. São esses os principais nomes que protagonizam A Revolução dos Bichos, de George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair).

O livro narra primeiramente a luta dos animais de uma fazenda chamada Granja do Solar contra seu dono, o fazendeiro opressor Mr. Jones. Cansados de tanta exploração, os animais, encorajados com ideias de igualdade e liberdade, expulsam o fazendeiro da fazenda e passam a administrar as terras sozinhos, sob o controle dos porcos Bola de Neve e Napoleão e obedecendo a um conjunto de conceitos sociais, como "todos os animais são iguais" e "quatro patas bom, duas patas ruim". Mas com o tempo, a situação começa a se complicar na Granja dos Bichos quando Napoleão dá um "golpe de estado" e expulsa seu companheiro de liderança da fazenda. Começa-se a desvirtuar e manipular cada um dos conceitos que incitaram a revolução, e o novo único líder instaura gradativamente um sistema autoritário e sanguinário, visando apenas seus próprios interesses e submetendo os animais a uma gestão tão cruel ou pior à que viviam antes da revolução.

Primordialmente, é necessário lembrar que o livro é uma crítica clara e de fácil compreensão aos absurdos que ocorriam na URSS (antiga União Soviética) no governo comunista de Josef Stalin, visto hoje como um dos mais malignos ditadores da história. Por causa disso, a obra é constantemente usada como propaganda contra o comunismo em geral, mas há controvérsias. Até porque Stalin maquiou usou sim os ideais comunistas para chegar ao poder e maquiou-os a seu gosto para impor seu governo truculento. Socialismo e comunismo não implicam em ter um governo autoritário. Isso foi uma peculiaridade - horrorosa, obviamente - do governo de Stalin. E além disso, o próprio Orwell se considerava pró-socialismo, simpatizava com o trotskismo e via no governo stalinista, especificamente, "poucos indícios de que a URSS estivesse avançando na direção de algo que pudesse chamar de socialismo". Isso fica claro no livro, já que a Napoleão (Stalin), o verdadeiro antagonista da história, trai seu camarada Bola de Neve (Trotsky), expulsando-o da fazenda, espalhando mentiras a seu respeito e demonizando-o, mas em nenhum momento Orwell revela quais eram as reais intenções de Bola de Neve na história: se suas convicções de igualdade e justiça eram legítimas e sinceras ou se o mesmo era uma farsante obcecado pelo poder como Napoleão. Logo, generalizar a crítica do livro e direcioná-la às ideias socialistas como um todo é extremamente equivocado.


Mas independente de comunismo e socialismo, o livro até hoje serve como uma bela crítica a todo e qualquer sistema sustentados por manipulação política e alienação, seja ele de esquerda ou de direita. Os mesmos elementos presentes em uma sociedade capitalista também estão aqui: há o líder explorador; os proletários que exercem os trabalhos braçais; há a figura religiosa (o corvo) que chega com o objetivo de pacificar o proletariado e fazê-los acreditar em um cenário paradisíaco que habitarão no futuro; o porta-voz persuasivo 'contratado' pelo governo para influenciar a comunidade; e tem a classe que não pensa por si mesma (as ovelhas, que alguns dizem ousadamente estarem representando a classe média despolitizada - e eu reforço esse pensamento) e só repete, descerebradamente, tudo que a classe dominante lhe impõe, influenciando a classe proletária a também aceitarem a tudo.

O que se vê durante todo o livro é uma humanização do vilão. Vê-se um porco deixando de lado sua natureza animalesca e incorporando hábitos próprios dos seres humanos. No final do livro, essa humanização atinge seu ápice, em uma das cenas mais horripilantes que já li (pesada, por todo o seu significado), culminando em um desfecho aterrador. A escrita de George Orwell deixa tudo ainda mais tenso. O autor escrever de forma completamente ausente, externa, contendo-se apenas em narrar os fatos. Não há qualquer tipo de profundidade no sentimento dos personagens. A escrita é propositalmente superficial, e a ausência do narrador nesse ponto deixa o leitor ainda mais desolado, já que tudo o que pode ser feito diante dos absurdos cometidos por Napoleão é só e somente assistir (no caso, ler).

Depois de ler o livro, decidi assistir ao filme - sim, já foi adaptado para o cinema. A versão cinematográfica que assisti foi uma animação (a primeira animação britânica do cinema) de 1954, adaptada, dirigida e produzida por John Halas e Joy Batchelor. Essa versão, a nível de curiosidade, foi um dos filmes escolhidos para figurar aquele famoso livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Foi através desse livro que tomei conhecimento dessa adaptação e por isso a escolhi para assistir. A animação é sombria e os personagens possuem traços assustadores. É válido lembrar que nessa época, a hegemonia no "reino das animações" era toda de Walt Disney, com seus personagens bonitinhos, seu sentimentalismo e sua magia. Esse filme, voltado para os adultos, destoou bastante das animações americanas da época, e creio ser esse o maior motivo para ser tão reconhecido. No mais, a animação é um fiel, porém breve resumo de tudo que é apresentado no livro (com uma exceção de seu desfecho, levemente alterado para uma direção mais otimista).

A Revolução dos Bichos é sim uma obra que devia ser lida por todo mundo. Mas algo importante: é uma obra que devia ser lida por todo mundo com consciência. É completamente errôneo sair por aí usando certas obras como crítica a alguma coisa quando não se tem certeza do que o autor quis mesmo dizer com cada elemento. É sabido que a obra é uma crítica ao stalinismo... mas e o socialismo de Marx, o socialismo puro e inicial, longe de qualquer intervenção de Stalin ou Trotsky? Não seriam essas as verdadeiras ideias defendidas pelo autor?

Esse post foi escrito ao som de Histoire de Melody Nelson, de Serge Gainsbourg.

domingo, 6 de julho de 2014

Miranda por Miranda

Na última sexta-feira, dia 4, tive a coragem de ir para o centro da cidade mesmo sabendo que ia estar a maior bagunça devido ao resultado positivo do jogo do Brasil. Mas foi por um bom motivo. Ganhei, em uma promoção da página do Facebook "A Broadway é Aqui", um par de ingressos para assistir no Teatro Augusta ao espetáculo Miranda por Miranda. Fui muito bem acompanhado assistir ao musical e não me decepcionei.


Miranda por Miranda recebe esse título por ter Carmen Miranda estrelada por Stella Miranda. O musical foi escrito pela própria Stella, a partir de uma ideia de Miguel Falabella (como diz o próprio cartaz do musical, "D'après Miguel Falabella - e essa informação até serve como base para uma piada fenomenal no meio do musical).

Tenho uma admiração antiga por Stella Miranda - para ser exato, desde 2007, quando ela começou a atuar no seriado Toma Lá Dá, Dá Cá, também do Falabella. Ela interpretava a maravilhosa Dona Álvara. Mas apenas recentemente pude conhecer pessoalmente seus dotes teatrais (fui assistir ao musical A Madrinha Embriagada, que ficou onze meses em cartaz gratuitamente no Centro Cultural Fiesp Ruth Cardoso).

O musical é formado por vários números musicais recheados por muito alegria, um carisma invejável de todos (além de Stella Miranda, mais quatro rapazes super talentosos fazem parte do espetáculo, cantando e dançando) e muitas piadas. É para rir, sair contagiado do teatro e ouvir Carmen Miranda depois. É, não tem como não dar uma procurada básica no YouTube para ouvir na voz da própria Pequena Notável algumas das músicas presentes no musical.

Esse post foi escrito ao som de Chelsea Girl, de Nico.

O Lorax

Tive o privilégio (antigamente, costume - atualmente, sim, privilégio) de assistir a três filmes hoje e talvez seja esse o motivo de meu coração estar batendo mais feliz agora, às 22h12 de um domingo!
O primeiro filme foi o ótimo Trainspotting - Sem Limites, de Danny Boyle, que faz um tempo que eu estava querendo assistir e tive a oportunidade hoje. Sem comentários. O filme é ótimo! É forte, tem suas doses bárbaras de humor, Ewan McGregor está muito muito bem e os diálogos são impagáveis. É o tipo de filme que dá vontade de colecionar citações, haha.
O terceiro foi A Cadela, também chamado de Liza, do polêmico Marco Ferreri e com a minha querida Catherine Deneuve (tão querida que é atualmente o wallpaper do meu celular, pasmem). Bom... é... hum... eu ainda não sei o que falar desse filme. Sinceramente. Só posso dizer que foi um dos filmes mais esquisitos que já assisti na vida. Prefiro me manter em silêncio sobre ele por enquanto.
E o segundo, o filme ao qual se direciona diretamente esse post, é uma animação que assisti descomprometidamente e fiquei ligeiramente fascinado: O Lorax - Em Busca da Trúfula Perdida.


Primeiramente, não é segredo para ninguém dizer que tenho um amor singular por obras infantis - em particular, livros e filmes. Sempre cito Mary Poppins como exemplo nesses casos, que apesar de ter uma inocência e um humor envelhecidos para os dias de hoje, ainda assim preserva uma magia que sempre me conquista. E são basicamente essas características que me chamam a atenção nas obras infantis: a magia e a inocência peculiares presentes em cada um deles. Ouso dizer que obras infantis boas também trazem de brinde uma poesia involuntária.

O Lorax passa longe da lista de melhores animações que já vi (os filmes da Pixar ocupam aos montes essas posições), mas seu conteúdo foi interessante o suficiente para que eu precisasse falar dele para alguém. É um filme extremamente colorido, com uma trilha sonora doce e uma história sensacional. Sim, sensacional. Vivemos hoje em um mundo em que as crianças perdem a inocência muito rapidamente.
Elas não se interessam mais por babás que voam (o musical citado no parágrafo anterior), e sim por aventura, por ação! Não posso dizer que O Lorax é uma animação exemplar, cheia de ação e de cenas catastroficamente agitadas, mas possui um clímax com perseguição e explosões, e acho que isso pode saciar temporariamente a sede de aventura das crianças. Mas nos retemos agora ao resto do roteiro: ele é bem divertido, não tem um humor boboca como a maioria dos filmes da DreamWorks e traz, de modo nada didático (graças ao bom Deus, porque detesto conteúdos tratados de forma didática nos filmes), uma mensagem em favor da natureza, algo importante a ser passado para as crianças desde cedo. Resumindo... achei sensacional porque se algum dia eu tiver umx filhx (o que é improvável, visto que não faz parte de meus planos), esse será um dos filmes que terei o maior prazer em apresentá-lx. hahahaha

Vale lembrar que o filme é baseado em um livro do Dr. Seuss, que é um autor fantástico de livros infantis. Foi o mesmo que escreveu os livros que deram origem aos divertidíssimos O Grinch, O Gato e Horton e o Mundo dos Quem!


Esse post foi escrito ao som de Canções que Vão Morrer no Ar, d'A Banda Mais Bonita da Cidade.